quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Degustando café com uma língua eletrônica


O verbo degustar virou sinônimo de alta qualidade de vida, de maneira que a princípio não veríamos vantagem em repassar o prazer da degustação para um dispositivo eletrônico. Um dos grandes desafios dos tempos modernos, entretanto, é colocar as novas tecnologias a nosso serviço, sem delas nos tornarmos escravos. Acredito que isso possa ser feito com uma língua eletrônica.

Uma língua eletrônica tenta imitar o que faz uma língua humana, cujos sensores de paladar representados pelas papilas gustativas enviam ao cérebro sinais que são a combinação dos chamados sabores básicos: doce, amargo, azedo e salgado (os asiáticos incluíram umami, que corresponderia ao sabor de peixe cru, como um quinto sabor básico). Isso quer dizer que não detectamos substâncias químicas específicas ao saborear algo. Nossos sensores não têm seletividade para identificar cada uma das substâncias que provamos. Apesar disso, temos grande capacidade de reconhecimento dos diversos sabores. O café é constituído por dezenas de elementos e substâncias químicas, e nossa língua consegue reconhecê-lo prontamente sem identificar uma dessas substâncias sequer.

Na prática, a língua eletrônica é feita de um conjunto de sensores que são imersos no líquido que se quer identificar. Cada sensor contém uma película muito fina, de espessura nanométrica, depositada sobre eletrodos metálicos que permitem realizar medidas elétricas. Para estas medidas, aplica-se um sinal elétrico no eletrodo e mede-se a resposta que dependerá do tipo de líquido. O material empregado na película deve ser escolhido de acordo com a aplicação. Por exemplo, se queremos verificar pequenas diferenças de acidez num líquido, empregamos um material cujas propriedades elétricas variam bastante com o pH (isto é com a acidez). Usam-se vários sensores para ter variedade na resposta e assim formar uma “impressão digital” de cada líquido estudado.

A grande vantagem da língua eletrônica sobre a humana está na sensibilidade, pois é possível detectar sabores com muito maior precisão. Apenas a título de ilustração, menciono que se adicionarmos sal à água pura, a língua eletrônica consegue perceber que há sal muito antes de qualquer humano. Após a língua eletrônica detectar o sal, seria necessário aumentar a concentração mil vezes para que o humano perceba. É de se imaginar que se a língua eletrônica é tão sensível, então deve ser capaz de distinguir líquidos muito parecidos. Isso realmente acontece, pois com uma língua eletrônica pode-se distinguir diferentes tipos de café, vinhos de safras diferentes, marcas distintas de água de coco, além de muitos outros tipos de bebidas.

Logo após o surgimento de línguas eletrônicas, especulava-se se elas poderiam definir o que é gostoso ou não. Porque a análise do sinal elétrico permite apenas saber que um líquido é diferente do outro. Mas com o emprego de métodos de inteligência artificial, mais precisamente de aprendizado de máquina, é possível ensinar à língua eletrônica o que é um sabor gostoso. Numa experiência realizada pela USP de São Carlos e a Embrapa Instrumentação, também de São Carlos, verificou-se que uma língua eletrônica treinada podia adivinhar a nota atribuída por um degustador de café profissional. A propósito, identificar os chamados cafés gourmet era uma tarefa fácil para a língua eletrônica, o que provavelmente indica um alto controle de qualidade na produção desse tipo de café no Brasil.

Sempre aparecem polêmicas na divulgação de tecnologias que podem substituir humanos. No caso da língua eletrônica, a tecnologia seria auxiliar ao trabalho que degustadores e outros profissionais realizam no controle de qualidade de alimentos e bebidas. Para ensinar o que é bom ou ruim a uma língua eletrônica, há que se empregar dados fornecidos por especialistas humanos, que são insubstituíveis. 

Além disso, a característica “eletrônica” da língua traz outras implicações. Esse dispositivo eletrônico pode ter muitas outras funções que os humanos não podem ou não querem fazer. Por exemplo, pode-se usar uma língua eletrônica para testar sabor amargo de remédios em tentativas de deixá-los mais palatáveis. Pode-se empregá-la no controle ambiental e qualidade de águas, inclusive com detecção de pesticidas ou metais pesados nocivos à saúde.


A tecnologia por trás da língua eletrônica é uma combinação de nanotecnologia, importante para a escolha dos materiais adequados aos sensores obtidos a partir de películas de dimensões nanométricas, com métodos computacionais. Estes últimos, especialmente aqueles oriundos da inteligência artificial, são essenciais para o poder de discriminação de uma língua eletrônica. É mais um exemplo de aplicação que só se torna possível com convergências de tecnologias. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A incrível estória do menino que enxugava gelo


Era uma vez um menino muito inteligente, apaixonado por ciência e que sabia da necessidade de juntar economias para sua educação. Resolveu então usar seus conhecimentos científicos para ganhar dinheiro e fez fortuna enxugando gelo. Ou melhor, ganhou muito dinheiro em apostas, desafiando a quem se aventurasse que ele tinha encontrado uma maneira de enxugar gelo.

Veio gente de toda a parte para o desafio. O menino preparou um sistema simples, com uma forma de gelo furada ligada a um estreito canal. Ele apostava que conseguia enxugar gelo de tal maneira que o canal nem molhado ficava. E ganhava aposta após aposta, de valores cada vez mais altos. Os perdedores não contavam o segredo por vergonha de terem sido derrotados por um menino.

Afinal, qual era a mágica ou método científico que o menino havia descoberto? Ora, não havia mágica nenhuma. Era só um detalhe na formulação da aposta, pois o menino não especificava a escala de tempo. Só após iniciada a contenda é que ele dizia que seu método de enxugar gelo – com um simples pedaço de pano - era perfeito para a escala de segundos. Obviamente que o gelo não se derreteria em segundos e – a propósito - enxugar com o pano não fazia diferença! Para aqueles apostadores dispostos a pagar mais caro, desafiando o menino a enxugar gelo que já se estava derretendo, o menino era obrigado a usar uma escala menor do que segundos para poder ganhar. Mas a vitória era certa: bastava escolher a escala correta.

Resolvi contar esta estória para ressaltar a importância de escalas, em ciência e em nosso cotidiano. O ouro é dourado, como todo mundo sabe, quando em peças macroscópicas, ou seja, em anéis, correntes e barras. Porém, nanopartículas de ouro são avermelhadas, e sua cor pode variar com o tamanho e formato das partículas. Sabemos que o sol vai se acabar, e com ele a vida na Terra, mas não nos preocupamos pois isso só ocorrerá na escala de bilhões de anos.  

Em nosso dia a dia, podemos continuar usando a metáfora de “enxugar gelo”, na medida em que pensamos numa escala de minutos ou dezenas de minutos em que certamente o gelo em temperatura ambiente (20 ou 30ºC) derreterá. Em muitas decisões da sociedade, entretanto, seria essencial levar em conta a escala de tempo ou de investimentos.

Tomo como exemplo o problema mais grave no Brasil de hoje, que é a educação. As políticas e ações em educação são concebidas para alguns poucos anos, uma vez que as eleições majoritárias acontecem a cada quatro anos. As políticas em educação de que precisamos, que levariam muito mais tempo para dar resultado, não têm, portanto, chance de serem adotadas. A principal medida seria o aumento considerável nos salários dos professores, como já defendi em outro ensaio. Mas isso não daria resultado em menos de 10 ou 20 anos, porque é necessário treinar e formar professores, alterar paradigmas de nossas escolas – o que só é possível fazer com professores valorizados e bem pagos.

Uma dificuldade adicional é a escala de investimentos requeridos para dar aumentos de salários significativos. Uma vez que a folha salarial é de longe o item mais relevante no orçamento da educação, dobrar salários, por exemplo, corresponde a quase dobrar o orçamento. Muito mais barato e atraente politicamente é criar vários programas e subprogramas: de construções e melhorias de escolas, de merenda, de material escolar, de equipamentos, de atividades extraordinárias, e assim por diante. Podem ser inúmeros programas, por mais importantes, necessários ou justificáveis que sejam, ao custo que corresponderia a um aumento substancial nos salários dos professores.

Sem que a sociedade compreenda as diferenças de escala e se convença que - a persistirem os problemas graves de educação - o Brasil não tem futuro, continuaremos convivendo com repetidas políticas que nada mais são do que um eterno “enxugar de gelo”.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Pode ser quântico o computador do futuro

Já não vivemos sem computador. Além das máquinas que hoje recebem diferentes nomes, como microcomputador, computador portátil e outros nomes em inglês que acabamos por adotar, quase todos os aparelhos eletrônicos têm processadores. Estes processadores são os ingredientes essenciais dos computadores: são eles que “computam”. É interessante, aliás, notar uma mudança semântica no uso da palavra computador. Para os primeiros automóveis ou aviões que empregavam computadores, dizíamos que eles tinham computador de bordo. Hoje ninguém se lembra disso, pois cada carro ou avião tem inúmeros computadores (processadores) dentro de si.

Muitos têm sido os avanços na produção de computadores nas últimas décadas. Comecemos pela tela. Por longo tempo, empregou-se uma tecnologia antiga, com tubos de raios catódicos ou tubos de televisão, que já tem mais de cem anos. Devido ao princípio de funcionamento, não era possível obter tela fina e leve. Hoje, praticamente todos os novos computadores têm tela de cristal líquido (denominadas LCD, do nome em inglês “liquid crystal display”), e em breve poderão se popularizar as telas de diodos emissores de luz, denominadas de telas LED, da sigla em inglês “light emitting diode”. As telas de TV com LED usam semicondutores inorgânicos, materiais rígidos. Como já comentei neste espaço, já há tecnologia para produzir telas de plástico luminescente, o que permitirá obter telas flexíveis.

A capacidade de processamento também evoluiu enormemente, o que permite hoje a um telefone celular realizar tarefas que só computadores de grande porte poderiam fazer nos primórdios da computação. Isso vem acompanhado do aumento de capacidade de memória, principalmente com os novos materiais produzidos pela nanotecnologia (vide ensaio “Nanotecnologia chega ao Nobel”).

A evolução fantástica da capacidade computacional nos últimos anos, com aparelhos cada vez menores e mais poderosos, se deve ao aprimoramento na produção e controle de novos materiais. Isso só é possível com conhecimentos da teoria quântica, como já enfatizei mais de uma vez. Entretanto, o processamento e armazenamento da informação ainda se baseiam em processos explicados pela física clássica. Ocorre que as informações num computador atual (que chamamos de clássico) são armazenadas e lidas em materiais segundo as leis do eletromagnetismo clássico. Os estados lógicos binários 1 e 0 são definidos dependendo se há passagem ou não de corrente elétrica, ou se uma certa região está magnetizada ou não.

Há alguns anos propôs-se o desenvolvimento de um computador quântico, em que a lógica binária seria substituída aproveitando-se de uma propriedade interessante da mecânica quântica. Ao contrário da mecânica clássica para um sistema de dois estados em que uma entidade física só pode ocupar o estado “1” ou o estado “0”, na mecânica quântica existem infinitas possibilidades porque a entidade pode em princípio ocupar os dois estados simultaneamente.

Uma analogia é a de um livro que pode ser colocado em uma de duas prateleiras de uma estante. A uma prateleira atribuímos o estado “0” e à outra o estado “1”. Logicamente, no nosso mundo clássico o livro ou está em “1” ou em “0”. Já a mecânica quântica permite como solução a superposição dos estados, como se uma parte do livro pudesse estar na prateleira “0” e o restante na prateleira “1”. A possibilidade de dividir em 2 partes arbitrárias fornece a infinidade de soluções.

Assim, ao contrário do computador clássico cuja memória é feita de bits que podem guardar apenas "1" ou "0" de informação, um computador quântico mantém um conjunto de qubits (do inglês, quantum bit) que podem conter "1", "0" ou uma sobreposição destes estados. É o chamado paralelismo quântico que permite executar operações simultaneamente, aumentando enormemente a capacidade de processamento de informação. Há previsões de que um computador quântico poderá processar um milhão de operações enquanto um clássico poderia processar uma única.

Os sistemas físicos que representarão os qubits podem, em princípio, ter dimensões menores do que os elementos de circuito de um computador clássico, podendo ser inclusive núcleos de átomos. Isso permitiria miniaturização sem precedentes na história do computador, mas embute a maior dificuldade de fabricação de um computador quântico eficaz: a manipulação e verificação do estado de cada um desses sistemas físicos nos qubits. Por isso, um computador quântico ainda não está disponível para uso em larga escala, e não se tem previsão de quando poderá estar.

Das pesquisas em computação quântica, todavia, já há resultados concretos e usados pela sociedade. Trata-se da criptografia quântica, com a qual informações são criptografadas com muito mais segurança de que com os métodos clássicos atuais. A propósito, espera-se que um computador quântico possa descobrir as senhas criptografadas com os métodos clássicos. Isso significa que se um grupo de cientistas desenvolver um computador quântico com essa capacidade, todo o sistema de comércio e bancário estaria sob risco caso esses pesquisadores fossem mal intencionados. A solução seria imediatamente substituir todo o sistema com criptografia quântica, cujas senhas não poderiam ser quebradas. 


Eu particularmente não me preocupo com essa possibilidade de colapso. Na história da ciência não parece haver casos de grandes cientistas que usem seus inventos deliberadamente para o mal. Há logicamente casos em que as invenções foram usadas para a guerra, mas sempre havia outros objetivos que supostamente seriam benéficos. Felizmente os cientistas do mal ficam nas obras de ficção.