O
verbo degustar virou sinônimo de alta qualidade de vida, de maneira que a
princípio não veríamos vantagem em repassar o prazer da degustação para um
dispositivo eletrônico. Um dos grandes desafios dos tempos modernos,
entretanto, é colocar as novas tecnologias a nosso serviço, sem delas nos
tornarmos escravos. Acredito que isso possa ser feito com uma língua
eletrônica.
Uma
língua eletrônica tenta imitar o que faz uma língua humana, cujos sensores de
paladar representados pelas papilas gustativas enviam ao cérebro sinais que são
a combinação dos chamados sabores básicos: doce, amargo, azedo e salgado (os
asiáticos incluíram umami, que
corresponderia ao sabor de peixe cru, como um quinto sabor básico). Isso quer
dizer que não detectamos substâncias químicas específicas ao saborear algo.
Nossos sensores não têm seletividade para identificar cada uma das substâncias
que provamos. Apesar disso, temos grande capacidade de reconhecimento dos
diversos sabores. O café é constituído por dezenas de elementos e substâncias
químicas, e nossa língua consegue reconhecê-lo prontamente sem identificar uma
dessas substâncias sequer.
Na
prática, a língua eletrônica é feita de um conjunto de sensores que são imersos
no líquido que se quer identificar. Cada sensor contém uma película muito fina,
de espessura nanométrica, depositada sobre eletrodos metálicos que permitem
realizar medidas elétricas. Para estas medidas, aplica-se um sinal elétrico no
eletrodo e mede-se a resposta que dependerá do tipo de líquido. O material
empregado na película deve ser escolhido de acordo com a aplicação. Por
exemplo, se queremos verificar pequenas diferenças de acidez num líquido, empregamos
um material cujas propriedades elétricas variam bastante com o pH (isto é com a
acidez). Usam-se vários sensores para ter variedade na resposta e assim formar
uma “impressão digital” de cada líquido estudado.
A
grande vantagem da língua eletrônica sobre a humana está na sensibilidade, pois
é possível detectar sabores com muito maior precisão. Apenas a título de
ilustração, menciono que se adicionarmos sal à água pura, a língua eletrônica
consegue perceber que há sal muito antes de qualquer humano. Após a língua
eletrônica detectar o sal, seria necessário aumentar a concentração mil vezes
para que o humano perceba. É de se imaginar que se a língua eletrônica é tão
sensível, então deve ser capaz de distinguir líquidos muito parecidos. Isso
realmente acontece, pois com uma língua eletrônica pode-se distinguir
diferentes tipos de café, vinhos de safras diferentes, marcas distintas de água
de coco, além de muitos outros tipos de bebidas.
Logo
após o surgimento de línguas eletrônicas, especulava-se se elas poderiam
definir o que é gostoso ou não. Porque a análise do sinal elétrico permite
apenas saber que um líquido é diferente do outro. Mas com o emprego de métodos
de inteligência artificial, mais precisamente de aprendizado de máquina, é
possível ensinar à língua eletrônica o que é um sabor gostoso. Numa experiência
realizada pela USP de São Carlos e a Embrapa Instrumentação, também de São
Carlos, verificou-se que uma língua eletrônica treinada podia adivinhar a nota
atribuída por um degustador de café profissional. A propósito, identificar os
chamados cafés gourmet era uma tarefa fácil para a língua eletrônica, o que
provavelmente indica um alto controle de qualidade na produção desse tipo de
café no Brasil.
Sempre
aparecem polêmicas na divulgação de tecnologias que podem substituir humanos.
No caso da língua eletrônica, a tecnologia seria auxiliar ao trabalho que
degustadores e outros profissionais realizam no controle de qualidade de
alimentos e bebidas. Para ensinar o que é bom ou ruim a uma língua eletrônica,
há que se empregar dados fornecidos por especialistas humanos, que são
insubstituíveis.
Além
disso, a característica “eletrônica” da língua traz outras implicações. Esse
dispositivo eletrônico pode ter muitas outras funções que os humanos não podem
ou não querem fazer. Por exemplo, pode-se usar uma língua eletrônica para
testar sabor amargo de remédios em tentativas de deixá-los mais palatáveis.
Pode-se empregá-la no controle ambiental e qualidade de águas, inclusive com
detecção de pesticidas ou metais pesados nocivos à saúde.
A
tecnologia por trás da língua eletrônica é uma combinação de nanotecnologia,
importante para a escolha dos materiais adequados aos sensores obtidos a partir
de películas de dimensões nanométricas, com métodos computacionais. Estes
últimos, especialmente aqueles oriundos da inteligência artificial, são
essenciais para o poder de discriminação de uma língua eletrônica. É mais um
exemplo de aplicação que só se torna possível com convergências de tecnologias.